Estamos "comemorando" (na verdade, lamentando) nestes dias os dois anos de passagem do saudoso e querido George Harrison, que em 29 de novembro de 2001 faleceu vitimado por câncer, deixando uma lacuna irreparável no cenário da música popular mundial. O amigo Eric Clapton, juntamente com a viúva Olivia de Arias e o filho Dhani Harrison organizaram um show em homenagem ao eterno guitarrista dos Beatles exatamente um ano depois, no Royal Albert Hall londrino, quando muitos músicos e artistas amigos de Harrison prestaram uma homenagem à ele reinterpretando várias de suas preciosas canções, desde aquelas compostas com os Fabs até temas criados em sua carreira solo precocemente interrompida com o agravamento da doença. O DVD e o CD duplos que estão saindo agora trazem o concerto na íntegra, dando-nos uma sensação da presença sutil de George entre os colegas que reproduziram com afeição e amor as suas músicas, incluindo-se aí os colegas de banda Paul McCartney e Ringo Starr. Paul, aliás, escolheu a maravilhosa "All Things Must Pass", composta por George em 1968 e que acabou sendo renegada pelo grupo (leia-se Macca e Lennon) durante as filmagens de "Let It Be" em janeiro do ano seguinte.
Quem possui os bootlegs destas sessões percebe a displicência da dupla em acompanhar Harrison nesta faixa magnífica que exalta em sua letra a inerente condição de transformação e efemeridade que acompanha a vida humana em todos os sentidos, seja material ou espiritualmente. Pode ser impressão minha, mas McCartney talvez tenha escolhido essa canção justamente para 'pagar' seu débito com George, reconhecendo sua indisponibilidade (ou má vontade) com o colega naquela ocasião, quando não lhe dava espaço para incluir suas composições nos discos dos Beatles. Bem, o fato é que a Warner parece estar de posse do catálogo de Harrison novamente, e Dhani promete muitas novidades para os próximos anos, coisas como remasterizações de álbuns antigos, bônus tracks e out-takes da carreira solo do pai, além, é claro, de músicas inéditas. E aí só nos resta rezar para que George 'ventile' nos pensamentos do filho a permissão para lançar material da mal fadada excursão realizada em fins de 1974 pela América do Norte, há 29 anos atrás, quando o guitarrista dos Beatles apresentou-se em 26 cidades daquele continente, em 45 concertos, entre os dias 2 de novembro e 20 de dezembro. Eu escrevi 'mal fadada' por força de expressão, já que as críticas negativas à turnê foram massacrantes, fazendo com o que o próprio Harrison - que registrou em fita muitos shows com a idéia de lançar um LP duplo e um filme - se limitasse a exibir esse material editado apenas para os privilegiados visitantes de Friar park.
O ano de 1974 não foi dos melhores para George. Logo de início, ele teve que suportar a partida da esposa Patti com seu melhor amigo, Eric Clapton. A relação do casal não estava mais dando certo há muito tempo e Harrison na verdade parecia não investir muito nela, já que vivia desenvolvendo affairs românticos com outras mulheres (entre elas, a de Ringo!) e dedicando-se às meditações e rituais da seita Hari-Khrisna, o que irritava e magoava Patti. Mas é sempre complicado ver a mulher partir, e com nosso herói não foi diferente. Pintou crise, e George atolou-se no trabalho como forma de tapear a dor de corno... montou seu selo próprio, Dark Horse Records, gravou uma série de novas canções, compôs em parceria com RonWood, tocou em jams sessions com músicos de jazz-rock em Los Angeles e produziu dois álbuns do amigo e mestre Ravi Shankar, além do excelente disco de estréia do duo Splinter.
Ao final do ano, ele reuniu algumas faixas gravadas no decorrer do período em diferentes estúdios de LA e Londres e preparou o LP "Dark Horse", que fora concluído em outubro de 1974 em meio aos ensaios da turnê pela América, que ele anunciou em setembro e também numa grande coletiva à imprensa no dia 24 de outubro já em território americano. Tantas atividades e ensaios (além de alguns drinks) fizeram com que George perdesse sua voz. No dia 2 de novembro, Harrison & banda (Billy Preston, teclados; Willie Weeks, contrabaixo; Andy Newmark, bateria; Jim Keltner, bateria (a partir da metade da turnê); Robben Ford, guitarra; Tom Scott, saxophone; Jim Woods, sopro; Chuck Findley, trompete, e Emil Richards, percussão) dividindo os holofotes com Ravi Shankar e banda, iniciaram sua peregrinação em Vancouver, Canadá. O repertório começava com "Hari's On Tour", número instrumental que também abria o LP "Dark Horse", e passava por "The Lord Loves The One" (esta apresentada somente no primeiro show), "While My Guitar Gently Weeps", "Something", "Will It Go Round In Circles" (com Billy Preston), "Who Can See It" (também só no primeiro show), "Sue Me Sue You Blues", sete (7) peças indianas de Shankar, "For You Blue", "Give me Love", "Soundstage Of Mind" (outro instrumental com criação coletiva, embora registrada em nome de George), "In My Life" (Lennon/ McCartney), "Tom Cat" (instrumental com Tom Scott & LA Express), "Maya Love", "Dark Horse", "Nothing From Nothing" (Billy Preston), "Outa Space" (Billy Preston) e "What Is Life", com "My Sweet Lord" no 'encore'. A última apresentação aconteceu no dia 20 de dezembro no Madison Square Garden novaiorquino, quando John Lennon assistiu a apresentação da platéia, indo ao encontro de George no backstage. Na maior parte dos dias o grupo apresentou-se em duas sessões, uma vespertina e outra noturna, como era costume nos anos 70.
Na verdade, esses shows tiveram inúmeros bons momentos, com uma excelente performance dos músicos participantes e uma proposta ousada para a época, que era unir em um só espetáculo a música pop, o funk e o jazz-rock com a tradicional e clássica música indiana (os músicos brincavam entre si, classificando-se de 'cowboys' e 'indianos'). Mas vamos começar pelos maus bocados: as críticas negativas ao ritmo do espetáculo tinham lá um pouco de razão; afinal, apesar da proposta interessante e do caráter enriquecedor da troca de informações culturais para uma audiência acostumada ao barulho (e à cada vez mais fugaz pasteurização musical já em vigor na ocasião), as apresentações de Shankar acabaram sendo longas demais para os 'ligadões' e afoitos fãs dos Beatles e do rock & roll em geral. Além do mais, insistir numa 'catequização' de Khrisna para um público já mergulhado no mundo da cocaína e no desbunde pré-punk e barra pesada que marcaria a primeira metade da década era remar na contramão dos modismos vigentes, bem como uma cantilena meio careta. Mas George gostava de ser do contra. E foi em frente. Shankar, no entanto, sucumbiu à tensão dos primeiros 18 dias da excursão e acabou sofrendo uma ameaça de enfarte, o que o impossibilitou de atuar nos shows durante alguns dias, voltando a fazer parte do programa somente em 19 de dezembro, no penúltimo concerto.
A voz de Harrison foi outro problema, fazendo com que as interpretações fossem, em algumas oportunidades, constrangedoras, pois nas partes melódicas de notas mais altas George passou a usar um recurso antigo do amigo Bob Dylan, que era o de simplesmente 'falar' as canções, alterando suas melodias para adequa-las à carência do vocal. Isso sem falar nas mudanças das letras originais, outra mania copiada de Dylan. Em "something", por exemplo, George cantava "If there's something in the way/ we can moved it", ao invés da linha original "something in the way/ she moves", numa possível citação ao fim de seu casamento. Em "While My Guitar Gently Weeps", ele cantava "gently smile", tentando acrescentar um otimismo oriental ao tema originalmente melancólico da letra; em "In My Life" (uma das surpresas dos shows, pois ninguém podia imaginar George cantando um tema Lennon/McCartney nestas alturas do campeonato) ele cometeu uma 'heresia às avessas' ao cantar "in my life i love God more", alterando a letra do clássico de "Rubber Soul"!
Segundo declarações do saxofonista Tom Scott à revista Rolling Stone, durante os ensaios para a turnê, Ravi Shankar - temendo uma rejeição ruidosa do público - procurou convencer Harrison a incluir temas dos Beatles no repertório do show, coisa que ele se recusava a fazer em princípio. Convencido pelo amigo a ceder, mesmo assim o guitarrista parecia cultivar uma irritante indiferença ao cantá-las, como se ele se sentisse 'obrigado' pelas circunstâncias a fazê-lo. Parecia alimentar uma espécie de auto-paródia, imprimindo também um certo cinismo na maneira de interpretá-las. Na verdade, Harrison buscava auto-afirmação como um artista solo, tratando os Beatles como um fato do passado. O seu bom e sarcástico humor também aparecia, vez por outra. Em alguns shows, ele insistia em se anunciar como Neil Diamond! E seu encontro com o então presidente Ford na Casa Branca para um lanche naqueles dias proporcionou aos fãs e à mídia um espetáculo bizarro, inusitado e meio deslocado. Quem podia entender?
Durante muitas apresentações, George parecia desanimar-se com a apatia da platéia, que pouco aplaudia alguns de seus temas mais recentes, parecendo mais entusiasmada com Billy Preston, que vivia naqueles tempos um período de muito sucesso. No show realizado em Uniondale, estado de NY, no dia 15 de dezembro, ele disse ao público: 'Oh, merda! Tem alguém aí embaixo? Vocês estão tão quietos!'. Em Los Angeles, no dia 5 de novembro, inconformado com a pouca vibração das pessoas, ele foi ao microfone resmungar: "Daqui de cima a gente não consegue ver direito, mas parece-me que vocês estão mortos aí embaixo!". O bode de George com o público refletiu-se em alguns momentos de maneira mais perceptível, como em Long Island, em 15 de novembro, quando ele cantou com um desânimo incrível e parecia definhar-se no palco. Coincidentemente, George e John haviam saído juntos - com suas respectivas namoradas na época, Olivia de Arias e May Pang - na noite anterior, e Lennon estava presente entre os convidados nesta mesma apresentação do dia 15, prometendo a George que tocaria com ele quando a excursão chegasse em Nova Iorque. Se aconteceu algum stress entre eles, ninguém soube ao certo.
Billy Preston, por sua vez, tinha três faixas no set list, e procurava incendiar o público o tempo todo com gritos e danças amalucadas pelo palco. Alguns críticos escreveram que ele salvara os shows da melancolia e pasmaceira, chegando a ofuscar Harrison, que em muitas oportunidades mostrava-se acuado e incomodado com tal situação. Até a versão de 'My Sweet Lord' que fechava a apresentação era a gravada por Preston em 1971! Na verdade, George tinha grandes dificuldades em sentir-se seguro no palco, e precisava de qualquer maneira assegurar-se de que não era o centro das atenções, preferindo dividir a cena com Preston e os outros músicos (na turnê realizada no Japão, 17 anos depois, Eric Clapton acabou sendo seu parceiro nesta 'divisão'). Assim, sentia-se mais livre como músico, como se fosse menos 'cobrado'. Para um repórter que insinuou que o ex-beatle sentia ciúmes do pique de Preston, Harrison respondeu: "Preciso muito de Billy ao meu lado, não sei o que seria de mim sem ele". Ele falava sério...
Voltar a se expor na mídia, para qualquer um dos 4 ex-beatles, significava submeter-se à um verdadeiro bombardeio com a pergunta "Quando é que os Beatles vão voltar?", o que irritava e descontrolava Harrison, que, visivelmente nervoso, respondeu certa vez à Rolling Stone: "Ghandi disse 'crie e preserve sua própria imagem'. A minha imagem escolhida não é a do 'beatle George'. Se o público só quer pensar em Beatles, que vá assistir ao show dos Wings! Por que viver no passado? Esteja aqui e agora, e se você não gosta de mim, dane-se, pois eu sou o que sou". Quando se perguntava sobre as reações negativas do público dos shows, a coisa ficava mais pesada: "Olha, tem muito mais coisa rolando do que bêbados chatos gritando, enchendo o saco e passeando durante a parte de Ravi. O público tem que pensar um pouco. Tem que sacrificar alguma coisa, tem que criar uma boa energia também. Tem que ouvir e observar, e se prestar atenção, verá que existe conteúdo no palco. Se as pessoas deixarem de fazer delas mesmas uma barreira e abrirem suas mentes, se divertirão muito mais com o coração. Há muita alegria no mundo!".
Na última apresentação, em Nova Iorque, George havia insistido para que John subisse ao palco com ele para juntos tocarem "In My Life", faixa que ele sempre terminava dizendo 'Obrigado, John, Paul e Ringo, os ex, ex, ex- beatles! Deus os abençoe!". Voltando atrás na promessa feita alguns dias antes, não subiu ao palco, deixando o parceiro decepcionado. Quando foi ao encontro de Harrison no backstage, após o final do show, teria recebido um empurrão dele em meio a uma discussão relativa à Apple e seus constantes problemas burocráticos e financeiros. John alegou depois que George estava de fato enfurecido com ele porque não assinou um dos milhões de termos contratuais que envolviam os Beatles, sob conselho de seu astrólogo, que não achava o dia "propício a esse tipo de coisa". Alegando também falta de tempo para ensaiar, Lennon achou melhor não subir ao palco "para tocar só um ou dois acordes". Alguns dias mais tarde, declarou à imprensa: "Apesar de sua voz estar péssima, a atmosfera do show em Long Island (no dia 15/12) era boa, e o público vibrou. O grande erro de George foi não ter tocado as coisas antigas que o público queria. Mas eu o entendo e o respeito. Ele não estava preparado, pois comigo aconteceu o mesmo durante os shows beneficentes que fiz em Nova Iorque dois anos antes". Passado o momento de atrito, os dois teriam seguido juntos para a boate Hippopótamus com toda a equipe do espetáculo, para uma festa de despedida. Até Yoko estava presente, mais uma vez cercando John, que poucos dias depois já estava ao lado da esposa outra vez. Foi o último encontro dos amigos em vida. Pelo menos aqui, neste planetinha...
Quando se ouve aos vários discos piratas gravados da platéia durante as apresentações (e principalmente as duas faixas mixadas e lançadas em um compacto oficial que acompanhou o livro caríssimo e de edição limitada "Songs From George Harrison", de 92) pode-se perceber que as performances de George e do grupo que o acompanhou eram em sua maioria fortes e concisas, dotadas de swing e de um espírito funk e até jazz-rock, como já disse acima, estilos estes então inéditos na carreira de Harrison. A influência de Billy Preston certamente foi decisiva, mas o fato é que o ex-beatle estava buscando novas direções para sua música, investindo mais no apuro técnico e na diversificação rítmica como formas de renovar sua criatividade, assim como fizera anos antes com a música indiana nos discos dos Beatles, com a country music e o gospel em "all Things". Neste sentido, essas apresentações soaram mais eloqüentes e representativas do que os seus discos da ocasião (com exceção do 'Thirty-Three and a Third', de 76, que revela o mesmo espírito funk vibrante e um guitarrista no auge de sua capacidade técnica); ao reinterpretar seus temas, ele buscou também não utilizar a fórmula fácil de reproduzir ao vivo os arranjos bolados e tocados em estúdio, praticando um pouco de improvisação e enriquecendo mais o feeling das execuções das músicas. Ao final de muitos shows, a platéia entendia sim essa empreitada, e os aplausos e palmas eram intensos. Essa turnê, portanto, serve de síntese dos caminhos percorridos pela música de George Harrison, já que a igualmente instigante presença de Shankar trouxe a parte indiana ao evento como parte fundamental de sua transição de roqueiro rock-a-billy para horizontes mais extensos. Como todos sabem, George Harrison foi um dos principais responsáveis pela inclusão da música indiana no circuito da música pop dos anos 60.
Em vida, George parecia não querer se submeter às críticas negativas que tanto o derrubavam, deixando esse material arquivado e para uso pessoal, apenas. Mas o que se espera é que Dhani nos dê esse presente um dia, abrindo um capítulo esquecido e mal compreendido da carreira de seu pai, lançando essas apresentações em DVD e em CD. Enquanto isso não acontece, recomendo aos fãs a audição de 'Washington 74', 'Live At Seattle', 'FortWorth, Texas' e 'Baton Rouge', as melhores gravações da turnê de 74 disponíveis entre os colecionadores.
Por Marcelo Sanches
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http://www.bekkoame.ne.jp/~garp/hari/live74.htm